A escrita em quatro diferentes cenários
Leia abaixo parte desse artigo recomendado pela Professora Lilian Starobinas
O primeiro cenário a ser revisitado é o da Antigüidade grega e romana. Nesse período, os textos eram escritos em rolos, que consistiam de longas faixas de papiro (material feito de uma erva) ou pergaminho (feito da pele de cabra ou ovelha), que o leitor segurava com as duas mãos durante a leitura (Chartier, 1999). Os textos, manuscritos, eram dispostos horizontalmente no rolo e distribuídos em colunas. O leitor e o escritor desenrolavam o texto com a mão direita e enrolavam as partes lidas com a mão esquerda. Tal suporte acarretava limitações para os atos de escrever e de ler, já que tanto os leitores quanto os escritores deveriam mobilizar as duas mãos para manusear o rolo. É difícil imaginar um escritor de rolo produzindo seus textos e segurando o rolo de papiro ao mesmo tempo. Em conseqüência, a produção de uma obra, na Antigüidade, dependia de dois profissionais: o escritor, que elaborava os textos, e o escriba, que escrevia no rolo os textos ditados pelo escritor.
Entre os séculos II e IV da era cristã, a escrita passa a se inserir em um segundo cenário na medida em que uma nova e revolucionária forma de livro manuscrito vem substituir o livro em forma de rolo. Surgia, então, um novo suporte de escrita e de leitura chamado códice. Chartier (1999) descreve o códice como folhas de papiro dobradas e dispostas em cadernos, que eram costurados uns aos outros e encadernados de forma similar à do livro moderno. Tais cadernos substituíram progressivamente os rolos que, até então, carregavam a cultura escrita. O códice, como nova materialidade da escrita, transformou profundamente as formas de lidar com o texto. A partir de sua invenção, foi possível escrever e ler ao mesmo tempo, folhear uma obra, comparar duas ou mais obras abertas e localizar trechos a partir das páginas e dos índices, isso porque o códice permitia localização mais fácil e manipulação mais agradável do texto. Além disso, o códice permitiu que houvesse uma redução nos custos da fabricação do livro, isso porque possibilitou a utilização dos dois lados da página, a redução das margens e a reunião de um grande número de textos em volumes menores. No entanto, apesar de toda a evolução acarretada pelo surgimento do códice, a reprodução dos textos ainda era lenta e limitada, já que, assim como no rolo, os textos do códice também eram manuscritos.
No século XV, uma outra grande revolução - gerada pela invenção da imprensa - dá lugar a um terceiro cenário. Uma das principais características deste é a popularização do acesso às obras literárias. Até então, só era possível reproduzir um texto copiando-o à mão, mas a nova técnica inventada por Gutenberg, baseada em tipos móveis e na prensa, abriu, na história do Ocidente, a possibilidade inédita de multiplicação de textos. A partir dessa possibilidade, profissionais do texto, como tipógrafos, impressores, livreiros, corretores e editores surgiram e se tornaram importantes na confecção e reprodução das obras. Para Chartier (1999), contudo, a invenção de Gutenberg não foi uma revolução tão radical quanto se diz, e a razão para isso reside no fato de que, embora admitindo a importância de Gutenberg e de todas as transformações decorrentes da invenção da imprensa, Chartier (1999) leva em conta principalmente as características estruturais dos suportes textuais e alega que um livro manuscrito e um livro pós-Gutenberg se baseiam nas mesmas estruturas fundamentais do códice: distribuição do texto na superfície da página, paginação, numerações, índices, sumários. Dessa forma, de seu ponto de vista, há uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso. Ainda segundo Chartier (2002), tal continuidade deixa de existir com o advento da "revolução digital", ocorrida no final do século XX. Surge, então, a tela do computador como suporte textual, e é inaugurada a era da escrita e da leitura on-line, que predomina no nosso quarto e último cenário. Na visão de Chartier (1999), a revolução digital gerou mudanças muito mais radicais do que a revolução da imprensa por diversos motivos. Entre esses motivos, estão os de que a tela do computador: (a) permite que qualquer texto seja lido ou escrito em um mesmo e único suporte textual; (b) gera o desaparecimento dos critérios imediatos, visíveis, e de materiais de classificação e hierarquização dos discursos (paginações, indexações, citações, notas de pé de página, capítulos ou anexos); (c) faculta o surgimento do hipertexto, ou seja, de um texto não linear, não seqüencial e repleto de links que remetem a outros textos, e (d) inaugura a possibilidade de diálogo entre leitores e escritores.
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